CODA 10 - popular é o pão
Carlos Menezes nasceu no Funchal, na freguesia de São Pedro, no dia 29 de Setembro de 1920. Ajudou a selar o seu destino na música a arreigada tradição da família paterna nessa arte, da qual emergiram três músicos destacados e até dois construtores de instrumentos. Muito precocemente, com apenas cinco anos, iniciou a aprendizagem e a prática da guitarra, o que fez de forma autodidacta e com o pai a acompanhá-lo. Três anos volvidos, estreou-se no Teatro-Circo do Funchal, onde tocou, à guitarra portuguesa, diversos fados. Aos 9/10 anos, ingressou na Filarmónica Artístico Funchalense, de que o seu pai era membro, ali tendo aprendido solfejo e iniciado a aprendizagem do trompete, instrumento que passou a tocar em público a partir dos 15 anos. No final da década de 1930, foi trompetista e guitarrista na 'Moonlight Melody Band', um noneto fundado em 1937 e dirigido por Quinídio Teixeira. Prosseguir uma carreira musical não era, contudo, fácil ou sequer rentável, pelo que o jovem Carlos Menezes trabalhava, em simultâneo, numa fábrica de conservas de atum em azeite. A profissionalização haveria de chegar no início da década de 1940 quando, ao ouvi-lo tocar, o alfaiate Maximiano de Sousa (o Max) sugeriu ao gerente do hotel Bella Vista que lhe fizesse uma audição. Era então músico residente nessa unidade hoteleira o pianista Tony Amaral, cujo conjunto Carlos Menezes viria a integrar, actuando a partir de 1944 no Flamingo, uma célebre boite localizada no centro histórico do Funchal. O seu instrumento era já a guitarra eléctrica, que ouvira através das emissões radiofónicas da BBC. Não existindo nenhuma em Portugal, decidiu electrificar uma vulgar guitarra acústica. Para tal, acoplou ao cavalete do instrumento uma pastilha de amplificação, dispositivo que, durante a Segunda Guerra Mundial, os aviadores usavam junto à garganta para estabelecer as comunicações rádio.
RUMO A LISBOA E AO JAZZ
Em finais de 1946, Tony Amaral trocou a Madeira pelo continente. Nove meses depois, no dia 10 de Agosto de 1947, chegava à capital o guitarrista Carlos Menezes. O seu destino era o Nina, prestigiada boite do Chiado onde viria a actuar durante um ano com o conjunto de Tony Amaral. Além da prestação musical, muito baseada no repertório norte-americano, causou também sensação a guitarra eléctrica que o acompanhava, instrumento ainda desconhecido no continente. Carlos Menezes ambicionava, porém, uma guitarra construída de raiz e não uma mera adaptação improvisada. A inusitada encomenda foi entregue a um bem conhecido luthier localizado junto ao Limoeiro, o qual, embora contrariado, meteu mãos à obra. Surpreendentemente, poucos meses depois já a loja de instrumentos Santos Beirão tinha para venda diversas guitarras iguais à imaginada por Carlos Menezes, o que deixou o músico bastante perplexo… Foi com essa guitarra e com um pequeno e rudimentar amplificador que, integrado no conjunto de Tony Amaral, gravou em 1949 a primeira versão do clássico “Noites da Madeira”, editado em 1951 pela Columbia. Presentemente, alguns autores e músicos consideram esse tema o primeiro standard de Jazz português. O ano anterior à referida gravação foi particularmente importante para Carlos Menezes, pois representou o aprofundamento da sua relação com o Jazz. Em Maio de 1948, como membro do conjunto de Tony Amaral, participou numa jam-session efectuada nos estúdios da Rádio Renascença, sessão que teve como convidado o saxofonista norte-americano George Johnson. Nesse mesmo ano, no Clube Americano, onde actuou durante cerca de 12 meses com Tony Amaral, partilhou o palco com o saxofonista Don Byas. Ainda no Clube Americano, também em 1948, conheceu Luís Villas-Boas, que lhe abriu as portas do Jazz na capital. Por intermédio do “pai” do Jazz em Portugal, Carlos Menezes integrou não só as primeiras formações instrumentais do 'Hot Clube de Portugal' (HCP), como tocou nos festivais de Jazz promovidos pelo clube. Passou, sobretudo, a ser presença activa e regular nas suas inúmeras jam-sessions. Logo em Janeiro de 1951, participou no concerto de inauguração da primeira sede do HCP. Dois anos depois, actuou no I Festival de Música Moderna, realizado no Cinema Condes, tendo integrado o Quinteto do HCP. Ainda em 1953, tocou também com o pianista francês Claude Bolling e com um trio de cadetes da marinha de guerra dos Estados Unidos. Em 1954, actuou na inauguração da nova sede do HCP, na Praça da Alegria, e no ano seguinte participou numa outra jam-session, essa realizada na Faculdade de Ciências de Lisboa, tendo como convidado especial o clarinetista argentino Panchito Cao. Foi também a convite de Luís Villas-Boas que, em 1958, tocou no primeiro episódio do programa radiofónico Ritmo Sincopado. No estúdio da Emissora Nacional, Carlos Menezes gravou em duo com o guitarrista húngaro Elek Bacsik, e também em trio, mediante a adição do contrabaixista Luiz Matos. Para além da égide do HCP, Carlos Menezes colaborou com diversos músicos de Jazz, muito especialmente com Jorge Costa Pinto. Em 1961, participou num jingle publicitário pleno de swing que o referido maestro criou e gravou com a sua orquestra para promover um produto da Shell, dando assim cumprimento a uma encomenda de Raúl Calado, que, além de notável publicitário, foi também um destacado divulgador do Jazz em Portugal, tendo fundado o Clube Universitário de Jazz. Em 1962, integrou um dos octetos que Jorge Costa Pinto apresentou na RTP. No ano seguinte, fez parte da primeira orquestra organizada em Portugal para tocar Jazz. Foi nesse contexto que na noite de 25 de Janeiro de 1963 surgiu nos ecrãs de televisão com a Orquestra Jorge Costa Pinto. Fazia-se, assim, história na história do Jazz em Portugal e, uma vez mais, Carlos Menezes estava lá com a sua guitarra.
FAMA INTERNACIONAL
Músico profissional, durante boa parte da primeira metade dos anos 1950 Carlos Menezes manteve-se no conjunto de Tony Amaral, tendo tocado em clubes e restaurantes como o Cristal, Pigalle, Vela Azul e Maxime, mas também no Casino Estoril e até em Madrid, no Pinguino. Com o regresso do pianista à Madeira, ocorrido em 1953, na sequência de uma temporada de concertos no hotel Reid’s Palace, Carlos Menezes passou a actuar regularmente no restaurante Alvalade, no Campo Grande. Algum tempo depois, encontrava-se já no restaurante bar-dancing Mónaco, localizado em Caxias, e no hotel Embaixador, em Lisboa. No Verão de 1956, quando tocava no Casino Estoril – onde acompanhou, nomeadamente, grandes vedetas da canção francesa, como Juliette Gréco, Jacqueline François e Patachou –, foi inesperadamente ouvido por um conceituado músico e crítico de Jazz estrangeiro. Em Setembro, nas páginas do jornal Melody Maker, Steve Race haveria de equiparar Carlos Menezes aos melhores guitarristas de Jazz norte-americanos. O referido artigo acabou por ser, simbolicamente, o primeiro acto de reconhecimento internacional da existência de músicos de Jazz portugueses. No final da década de 1950, Carlos Menezes começou a colaborar com o conjunto do pianista espanhol Shegundo Galarza, no qual se manteria até 1973. A partir de 1961, tocou regularmente com o referido combo no restaurante bar-dancing Mónaco, mas também um pouco por todo o País e no estrangeiro, principalmente em Espanha e nos Estados Unidos. O primeiro disco de Carlos Menezes com Shegundo Galarza, intitulado Vamos Todos ao Cinema, surgiu em 1961. Seguiram-se outras obras, nomeadamente o álbum Seus Violinos Seu Conjunto, editado em 1965.
A década de 1960 trouxe a Carlos Menezes os dois únicos discos que gravou em nome próprio. Editados, respectivamente, em 1960 e 1961, receberam os títulos Dançando em Lisboa e A Guitarra e a Harpa que Falam. Neste último, Carlos Menezes fez uso da guitarra havaiana, instrumento que encomendara em Lourenço Marques, através de um catálogo norte-americano, quando, no final dos anos 1950, ali tocou durante a longa temporada que cumpriu no hotel Polana com Mário Simões e o seu conjunto.
Carlos Menezes teve uma acção de largo espectro na música, incluindo inúmeras participações nos Serões para Trabalhadores – espectáculos promovidos entre 1941 e 1974 pela Fundação Nacional para a Alegria no Trabalho (FNAT) e radiodifundidos pela Emissora Nacional – e no Festival da Canção. De facto, ao longo da sua carreira musical, gravou dezenas e dezenas de discos com algumas das mais notáveis vozes da música popular portuguesa, nomeadamente Max, Maria Odete Coutinho, Maria Clara, Maria Marize, Artur Garcia, Rui de Mascarenhas, Maria da Fé, Fernando Tordo e Luís Cília. Merecem, no entanto, destaque dois projectos desenvolvidos na segunda metade dos anos 1960, um por ser pioneiro e outro por envolver Amália Rodrigues.
O primeiro deles surgiu por iniciativa de Raúl Calado, que, apostado em criar um projecto de fusão do Fado com o Jazz, desafiou a fadista Maria da Fé a cantar com músicos praticantes de ambos os géneros e também da música ligeira portuguesa. Nas gravações, cuja direcção musical pertenceu a José Duarte, Carlos Menezes participou não com a guitarra, mas com um banjo. O resultado musical ficou documentado em dois EPs, ambos denominados Popfado e editados em 1966 e 1967 pela Chave. Sensivelmente no mesmo período, Carlos Menezes participou pela segunda vez num disco de Amália Rodrigues, artista que conhecera 20 anos antes, quando a fadista era presença assídua no seus espectáculos no Nina. Nos estúdios da Valentim de Carvalho, Carlos Menezes integrou uma orquestra dirigida por Joaquim Luís Gomes, tendo sido convocado não só pela mestria guitarrística, mas também pela capacidade, então invulgar, de leitura musical, algo fundamental devido à complexidade da peça a interpretar. Depois, havia, claro, o facto de dominar como poucos a tradição da guitarra na música espanhola, algo absolutamente inestimável quando o que estava em causa era a gravação de um andamento do célebre “Concerto de Aranjuez”. Carlos Menezes deixou, assim, a sua assinatura no disco Aranjuez, Mon Amour, editado em 1967 pela Columbia.
No dealbar dos anos 1970, Carlos Menezes acedeu ao convite do compositor Nóbrega e Sousa para integrar, como solista, a Orquestra Ligeira da Emissora Nacional (OLEN), da qual fez parte desde 1973 até ao início dos anos 1990, actuando e gravando sob a liderança dos maestros Tavares Belo e José Mesquita. Embora tal representasse uma pronunciada perda financeira, oferecia-lhe como atractivo a garantia de estabilidade profissional e de rendimentos, o que pesou na decisão final do guitarrista. A par da actividade que desenvolvia na referida orquestra, Carlos Menezes actuou durante mais de 17 anos no hotel Ritz, trabalho a que acedeu graças a Shegundo Galarza e que lhe permitiu tocar pontualmente em algumas unidades do mesmo grupo hoteleiro (Intercontinental), nomeadamente em Londres e no Cairo. Quando se reformou, Carlos Menezes manteve apenas as aulas de guitarra, actividade que iniciara várias décadas antes através da casa Gouveia Machado, uma discoteca e loja de instrumentos sediada na Rua de São José.
Homenageado em 2009 pelo blogue Jazz no País do Improviso! e pela Câmara Municipal de Cascais, Carlos Menezes deu no Centro Cultural de Cascais o seu último concerto público, pois veio a falecer em Dezembro de 2011. Quatro anos antes, em Março de 2007, tocara no teatro São Luiz, no evento de apresentação do livro O Jazz Segundo Villas-Boas. No espírito de uma jam-session, partilhou o palco do Jardim de Inverno com o pianista António José de Barros Veloso e o contrabaixista Bernardo Moreira. É essa, aliás, a última gravação conhecida de Carlos Menezes, que já nem guitarra possuía, pois estava totalmente afastado dos palcos. Apesar disso, e dos seus 86 anos, mantinha ainda bem presente a invulgar destreza técnica que o caracterizara como guitarrista.
João Moreira dos Santos
[1] Texto adaptado do guião do episódio especial do programa «Jazz A2» que o autor do artigo dedicou a Carlos Menezes por ocasião do seu 100.º aniversário. Transmitido pela Antena 2 no dia 30 de Dezembro de 2020, encontra-se disponível em RTP Play.
«Scat é cumo jazz... quer dizer nada»
RaRo é escrever sobreteatro não é a verdade... penso + em Glenn Close e em Glenda Jackson mas a frase serve e o Teatro impressiona-Me
'A ratoeira' em London ou Londres há + de dezenas danos a violência da repetição diferente tudo pode ser muito a sério ou não mas acima de tudo e a certa altura em 'Hamlet' o velho Guilherme deixou escrito «a arte dramática procura mostrar o espelho à natureza ao vício a sua própia imagem e outras duas ou três pertinências seguidas coisas de a vida da vida de esta vida
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de Helder B. Martins:
"Jazz, mediação, discursos"
No âmbito dos estudos sobre disseminação e divulgação musical o conceito de mediador tem vindo a adquirir um papel importante sobretudo a partir das propostas de Bruno Latour que vê o mediador como um “agente de transformação”. O conceito de «mediação» em relação à música foi proposto pela primeira vez por Theodor Adorno (1976, 1978, 2002) que teorizou sobre este conceito a partir da interpretação hegeliana de Marx sob influência de György Luckacs (Born e Barry, 2018: 443). Desde então o conceito de mediação musical tem vindo a ser trabalhado e adaptado em vários estudos. É daqui que surge a designada Actor-Network Theory (ANT) que começou a ser desenvolvida no início da década de 1980 por Michel Callon (1986a, 1997) e Bruno Latour (1996, 2005). É interessante notar que, uma vez mais, tal como noutros conceitos e teorias provenientes da antropologia ou da sociologia, os fenómenos relacionados com a música proporcionaram melhores entendimentos sobre os casos em estudo. Conforme afirmam Born e Barry:
(…) it is fascinating to reflect on the fact that music was there at the very start of ANT, stimulating discussion alongside such ‘things’ as electric vehicles, baboons, scallops and photoelectric cells in the attic seminar rooms of its home, the Centre de Sociologie de l’Innovation, part of the Ecole des Mines in Paris. Indeed, Latour has noted the strong influence exerted on his thinking specifically about mediation by Hennion, his close colleague at the CSI. The concept of mediation central to ANT came in part, then, from research on music! (ibid.: 445).
Gradualmente a sua aplicação aos estudos em música tem recebido importantes contributos de autores como Antoine Hennion (1989, 1991, 1993, entre outras), John Law (1999), Andrew Goodwin (1988, 1992), Steve Jones (1990, 1992), Tricia Rose (1994), Albin Zak (2001), Doolin e Lowe (2002), Michael Veal (2007), entre outros.
No caso dos divulgadores e/ou críticos, como é o caso de José Duarte, são frequentes os enunciados discursivos que estabelecem relações entre «jazz - símbolo social» e «jazz - objeto estético». Através dos seus discursos José Duarte – mediador de jazz em Portugal – construiu e constrói configurações que reposicionam o objeto musical condicionando e influenciando, assim, a receção desse mesmo objeto (Martins, 2020).
José Duarte identifica-se com o jazz a partir destes dois vetores: o estético e o sociopolítico. A partir deste enfoque pessoal, dos discursos veiculados, do conjunto de ações que desenvolveu (multicêntricas, regulares e continuadas, projetadas de forma sistemática) para a difusão e a promoção do jazz, passa a poder ser caracterizado como verdadeiro «mediador», de acordo com a síntese de Latour (2005): “(…) an entity with the agency to transform”.
Efetivamente, José Duarte instituiu-se como um agente de transformação. Desde as primeiras ações mediáticas que o jazz enquanto símbolo social preconiza um elemento de contestação e de resistência política, primeiro durante a ditadura (entre 1958 e 1974) mas também depois da instauração da Democracia. Numa altura em que se assistem à emergência de movimentos sustentados numa ideia ilusória de «ordem», «identidade» (que Lévi-Strauss caracterizou na década de 1970, como o novo mal do século) e «moral imaculada», “justicialismo”, “neo fascismos”, discursos de ódio e de instigação à justiça popular medieval, é particularmente importante focar o papel de José Duarte, em prol do jazz em Portugal (enquanto objeto estético) mas também no que concerne à mediação que efetuou e efetua através do jazz: que para si enforma e sistematiza um legado humanista de progresso e de justiça social, contra todas as exclusões e em prol da fraternidade.
Ao longo da sua atividade, José Duarte manteve uma constante prática de ações mediadoras: rádio, imprensa periódica, palestras, sessões fonográficas, produções fonográficas, organização de eventos, entre muitas outras.
Coda é apenas mais uma prática mediadora de José Duarte. Obrigado, José Duarte!
"Manhã tão forte que me anoiteceu" de Mário Sá-Carneiro 1890-1916
entrada livre
saída livre
Jazzé do Arte
novo ano vida velha
The End De Este...
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